segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Positivismo Jurídico - Kelsen, Hart e Bobbio

Hans Kelsen fundamentará o positivismo jurídico em sua mais alta expressão, dando continuidade a tradição que se fazia forte nos meios culturais germânicos. Nasceu em Praga, em 1881, quando as margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Privou com os neopositivistas lógicos do Círculo de Viena, nutrindo a purificação das ciências em face de preocupações metafísicas, na crise epistemológica que admitia que à ciência não é dado pronunciar juízos de valor. Foi o autor intelectual da Constituição Republicana Austríaca, lecionou na Universidade de Viena (1919-1929), foi juiz na Áustria (1921-1930). Em 1934 publicou sua Teoria Pura do Direito. Fugiu do nazismo e foi recebido em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia.

É acusado de reducionista por ter defendido suposta pureza científica. A ciência jurídica seria ciência pura, preocupada, tão somente, com o universo normativo. Concebeu kantianamente uma teoria da norma fundamental, radicada em uma primeira norma posta, de feição constitucional. A norma posta deve-se a uma norma suposta; a chamada norma hipotética fundamental vem solucionar a questão do fundamento último da validade das normas jurídicas. Afinal, o que legitimaria o Direito? Estado e Direito se confundem para Kelsen. Não haveria leis inconstitucionais ou decisões ilegais. Paradoxo vivido pelo próprio Kelsen, forçado a admitir a eficácia do direito nazista. Para o mestre de Viena, o cientista do Direito deveria se preocupar com a lei, tão somente.

Kelsen dá-nos conta de que o conhecimento jurídico só é científico se for neutro. Sua pureza decorre de corte epistemológico que defina o objeto e de corte axiológico que afirme a sua neutralidade. O operador jurídico deve identificar lacunas e apurar antinomias, bem a exemplo de Norberto Bobbio, de quem se falará mais adiante. Para Kelsen, autêntica é a interpretação do Direito pelos órgãos competentes: é que a decisão judicial qualifica uma norma jurídica individual. De acordo com o insuspeito Karl Larenz, a teoria pura do direito de Kelsen se constituiria na mais grandiosa tentativa de fundamentação da ciência do Direito como ciência (LARENZ, 1983, p. 82).

Seu livro mais importante, A Teoria Pura do Direito, é dividido em oito partes. Kelsen trata das relações entre Direito e natureza, Direito e moral, Direito e ciência, das normas chamadas estáticas, das normas chamadas dinâmicas, das relações entre Direito e Estado, do Direito Internacional e do problema da interpretação do Direito (KELSEN, 2004). A teoria pura do Direito, como teoria, procura descrever seu objeto, tratando o Direito como ele efetivamente é, e não como ele deve ser, isto é, afasta-se de paradigmas políticos. Tem como base metodológica o projeto de eliminar do Direito seus elementos estranhos, de cunho político e sociológico. É que o pensamento normativo do século XIX teria promovido uma adulteração do Direito, por conta da livre interpenetração de outras disciplinas no universo normativo.

As normas são o objeto da ciência do Direito. Os costumes podem criar normas legais ou morais. A validade é a existência específica de uma norma. E ainda, a norma pode ser válida até mesmo quando seu ato de vontade não tenha mais existência. A validade qualifica um deve, a eficiência caracteriza um é, e a diferença transcende questões de formatação verbal. Assim, na validade a norma deve ser cumprida, na eficácia a norma é efetivamente cumprida. Uma norma legal é válida antes mesmo de ser efetiva. A norma não seria verdadeira ou falsa, seria apenas válida ou não válida. Uma determinada decisão judicial não seria tão somente a explicitação de um julgamento; tratar-se-ia também de norma que determinado juiz aplica. Dizer-se que uma norma é injusta seria medida insuficiente para se reconhecer que existe uma ordem legal.

No que toca às relações entre Direito e Ética, parte-se do princípio que a pureza metodológica da ciência do Direito é ameaçada porque não se separa claramente esse último da Ética, tomando-se essa como a disciplina que tem por objeto conhecer e descrever a moral, que é delineada por um costume ou por um ato de vontade. A validade de uma norma jurídica independeria de sua ordem moral. Já Paulo, na carta aos romanos, determinava que se cumprissem todas as normas das autoridades, não obstante a inexistência de laços de ética e de moral (KELSEN, 2004, p. 67).

Um dos mais peculiares aspectos do Direito seria o fato de que ele mesmo regula sua criação e sua aplicação, percepção mais tarde aprofundada por Niklas Luhmann. No Direito, ao contrário da explicação da natureza, usa-se o princípio da imputação e não o da causalidade. Já o homem primitivo interpretava a natureza de acordo com a imputação, implementando interpretação sócio-normativa da natureza. As primeiras normas que o homem conheceu teriam sido contra o desejo sexual (incesto) e contra a vontade de agressão (homicídio). E porque somente o homem detém o livre arbítrio, é que somente o homem poderia se valer de juízos de imputação.

A teoria pura do direito dirige-se a normas, e não a fatos. Trata-se de percepção teórica radicalmente realista do Direito, da mais elaborada teoria do positivismo jurídico. Ao que consta, recusa-se a servir a interesses políticos, negando-se a propiciar ideologia que apóie ou critique determinado modelo jurídico. Uma norma inconstitucional seria válida até que especificamente anulada, e de tal modo, ela não é nula, é tão simplesmente anulável. Encontra-se no terreno da dinâmica das normas, dado que a questão da validade de uma norma decorreria da validade de uma outra norma.

A busca de uma regra cada vez mais alta no escalonamento hipotético levaria o cientista do Direito a uma norma pressuposta, que Kelsen chamará de norma básica. As normas seriam então de natureza estática ou dinâmica; a estática decorreria do referencial que justificaria as razões de validade de uma norma básica, a dinâmica decorreria do referencial que justificaria a validade das demais normas de determinado sistema.

Um dos pontos mais importantes da teoria pura dá-nos conta de que é irrelevante como se tomou o poder político, por revolução, por golpe de Estado ou por voto popular. Qualquer norma resultante do titular do poder é válida e apta para produzir efeitos. Trata-se do princípio da legitimidade, segundo o qual, toda norma seria válida até que oficialmente declarada inválida. Subsume-se do princípio da legitimidade o princípio da efetividade, isto é, por exemplo, se uma revolução não obteve suficiente sucesso para produzir um novo ordenamento, uma nova constituição, vale então a constituição pretérita, e o movimento revolucionário passa a ser tido como de alta traição.

Todo sistema normativo deteria validade. Não se poderia negar a validade de um sistema por conta do conteúdo de suas normas. O pressuposto geral encontrar-se-ia na presunção de aceitação da validade de uma norma básica. De tal modo, a função da norma básica não seria ética ou política; a função da norma básica seria epistemológica. Assim, plasma-se imensa contradição quando se admite a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica. De qualquer modo, como já alertou um estudioso brasileiro, tanto se falou em Kelsen, que a impressão geral era de que o jusfilósofo austríaco, sozinho, representava todo o pensamento jurídico da época, os outros aparecendo meros coadjuvantes do extraordinário painel de idéias por ele produzidas e postas em debate (VASCONCELOS, 2003, p. XIII).

Em doutrina de expressão inglesa o positivismo jurídico ganhou corpo no século XX por meio da obra de Herbert Hart, cuja livro principal The Concept of Law, foi publicado em 1961. Criticado por Ronald Dworkin e por Lon Fuller, Hart deixou na última edição de seu livro valioso post-scriptum, descoberto pouco depois de sua morte e em seguida publicado. Hart previu que a teoria de Kelsen, identificando o Estado com o Direito, correria o risco de abrir caminho para o totalitarismo (GOYARD-FABRE, 1999, p. 271). Mitigando percepções mais fechadas, Hart no entanto insistiu no sentido obrigacional do Direito, afirmando que a mais proeminente característica do Direito, em todos os tempos e lugares, consiste no fato de que sua existência significa que certos tipos de conduta humana não são opcionais, mas em certo sentido são obrigatórios (HART, 1997, p. 6).

Para Hart, distingue-se a lei dos demais comandos (como uma ordem de um marginal armado) pelo fato de que a lei consubstancia uma união entre normas primárias e secundárias, isto é, em comandos que estabelecem obrigações, a exemplo de não pise a grama, não roube, dirija sem ultrapassar a velocidade prevista (HALL, 2002, p. 276). Porém tais comandos decorrem de valores aceitos pela comunidade, substancializam-se por certo corpo que transcende do meramente lógico para o episodicamente desejável. Hart foi um entusiasta do pensamento de John Austin, que de certa forma revigorou, retomando a tradição da escola analítica de jurisprudência.

Norberto Bobbio, por fim, dá o toque terminal ao ciclo positivista, e o fez de forma arejada e avançada. Faleceu em janeiro de 2004, em Turim, aos 94 anos de idade. Intelectual com marcada atuação pragmática, foi figura marcante no século XX, do qual testemunhou as metamorfoses menos esperadas. Combateu o fascismo de Mussolini, o que lhe valeu o encarceramento. As afinidades com Antonio Gramsci não se esgotaram na crítica sistemática ao regime autoritário; é que eles foram os intelectuais italianos mais representativos do século passado, embora, bem entendido, ocupados com temáticas por vezes distintas, porém quase sempre convergentes.

Bobbio deixou-nos extensa obra de Política e Direito. Transitava pela filosofia analítica com a mesma densidade e firmeza com que dominava o pensamento sob uma dimensão historicista. A Teoria do Ordenamento Jurídico, livro que publicou em 1961, é exemplo de fino trato com problemas analíticos de Direito, a propósito de questões referentes a lacunas, antinomias e coerência normativa. É o livro que sintetiza o positivismo em Norberto Bobbio, retomando questões ventiladas por Hans Kelsen.

Norberto Bobbio tinha o ordenamento jurídico por um complexo de normas. Essas pertencem a um campo amplo, pelo que se determina vínculo permanente entre norma e ordenamento. Bobbio indagava a respeito da possibilidade de existência de ordenamento de norma única, a exemplo de, a. tudo é permitido, b. tudo é proibido, c. tudo é obrigatório. Para que se responda tal pergunta é necessário que se faça a distinção entre normas de conduta e normas de estrutura. Essas últimas prescrevendo a produção das normas em geral, aquelas primeiras desenhando comportamentos específicos. Por isso, em princípio, e academicamente, ordenamento de norma única seria plausível, me relação a normas de estrutura, a exemplo de é obrigatório tudo aquilo que o soberano determine.

A unidade do ordenamento, cujo pressuposto é a norma fundamental, repele incoerências, não tolerando antinomias ou posições incompatíveis. Algumas antinomias aparentes são de fácil solução. Como critério de escolha entre normas antinômicas solúveis, Bobbio sugere abordagens cronológicas (lex posteriori derrogat priori), hierárquicas (lex superior derrogat inferior) ou de especialidade (lex specialis derrogat generalis). Porém, tais critérios seriam imprestáveis em caso de normas antinômicas contemporâneas, de mesmo nível e de idêntica especialidade. Bobbio desenha então o princípio de interpretação favorável em face de uma exegese odiosa (BOBBIO, 1994, p. 110).

Portanto, Kelsen elevou o positivismo jurídico, fornecendo teorização robusta que se dizia defensora de um direito puro de influências políticas e de preocupações sociológicas. Hart releu o positivismo, repensando Austin, a quem imputou reverência de discípulo. Bobbio tonificou concepções positivistas, ajustando o modelo analítico ao mundo paradoxal e aporético no qual vivemos.

Disponível em: www.jusnavigandi.com.br. Acesso em 12 de Novembro de 2010.

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